Quando reportei a chacina de uma família inteira em Rondônia
Memórias de uma das reportagens mais marcantes de minha vida na Amazônia brasileira, quando mãe e filhas foram mortas por motivo fútil e meio cruel
Por Josi Gonçalves
Estava no trabalho quando meu telefone tocou. Era um policial. Do outro lado da linha ele me informava que uma mãe e quatro filhas estavam desaparecidas e que a polícia estava investigando o sumiço. Tão logo soubesse algo me diria. Cinco dias depois ele me retornou, era fim de tarde. Os corpos haviam sido achados.
À época eu morava em Vilhena, Cone Sul do estado de Rondônia, e trabalhava na Rede Amazônica, afiliada da TV Globo. Os corpos foram encontrados no município de Chupinguaia, distante uns 140 km de Vilhena. Eu e o cinegrafista tocamos pra lá. Chegamos à noite. Estava bem escuro. A orientação dada era pra irmos pra uma fazenda.
A estrada até lá era difícil, terra de chão com muitos buracos. Na porteira, um cheiro horrível, que jamais vou esquecer e que me revolve o estômago até hoje, empesteava o ar. Era o cheiro de gente morta.
Eu e meu cinegrafista, o Manoel, carinhosamente chamado por mim de Manu, protegemos o nariz com a roupa e seguimos até o local.
Os corpos de Ereni, a mãe, e das filhas Ingrid, de 17 anos, Juliana, de dez, Alini, de oito e Luana, de apenas dois anos, estavam numa cova na lateral de uma casinha humilde de madeira. De perto o odor era ainda mais fétido. Percebi que alguns peritos usavam uma pasta branca sob o nariz para não sentir o cheiro, outros fumavam cigarro de palha, daqueles fortes. Era pra amenizar o cheiro. Até eu traguei o cigarro. Vi gente vomitando por causa do cheiro.
A cova ficava ao lado de uma janela, a menos de cinco metros da casinha onde moravam os assassinos. Corpos de mãe e filhas estavam empilhados uns sobre os outros. Elas haviam sido enterradas há uma semana e estavam irreconhecíveis. A polícia iniciou a remoção. Vou me abster de comentar os detalhes mais macabros desse momento. Até hoje me perturbam.
Pedro, marido de Ereni e pai das meninas, foi quem achou os corpos. Desconfiou de uma terra que havia sido revolvida recentemente e estava coberta por uma lona. Um cachorro da família não saía de perto do local. Pedro pegou uma enxada e começou a cavar. De repente veio um tufo de cabelo. O capataz se desesperou, não teve coragem de continuar e chamou a polícia.
A polícia confirmou que se tratava da mãe e filhas que estavam desaparecidas e foram mortas por motivo fútil, torpe. Segundo o assassino Damião me disse, após ser preso, elas foram mortas porque lhe negaram leite. Após o assassinato, Damião e a esposa Lucimar, que o ajudou nos crimes, fugiram. Foram pegos semanas depois numa lavoura de café, no Mato Grosso.
Retrospectiva
Meses antes da chacina um senhor chamado Damião, capataz da fazenda Barro Vermelho encontrou uma senhora chamada Lucimar numa praça da avenida principal de Vilhena. Flerte vem, flerte vai. Veio o convite, rápido e sem rodeios: – Vamos morar juntos?
Ela topou na hora. Formava-se assim um novo casal e uma dupla de assassinos. Tempos depois, Damião foi rebaixado de função na fazenda e substituído por Pedro, o novo capataz que se mudara para a fazenda com a mulher e cinco filhos, dentre eles um menino de quatro anos, o Renan.
Enciumado, Damião tramou a morte deles. Comprou uma espingarda e aguardou o momento certo.
Tive oportunidade de entrevistá-lo. Estava na solitária, cela reservada para quem tem mau comportamento na cadeia.
Quando o entrevistei na cadeia, ele me disse que os novos inquilinos lhe negaram leite. Esse teria sido o motivo para matá-los.
Disse-me que foi até a casa de Ereni e com uma espingarda apontada na direção dela e das filhas, as forçou a ir para a casa dele, que ficava a uns 80 metros de distância. Pedro e o filho Renan, de quatro anos, só escaparam porque estavam ausente, haviam viajado para visitar parentes.
Lembro dele ter me dito que as trancou no banheiro. De fato comprovei no dia da cobertura jornalística que havia sangue no chão e paredes do banheiro que ficava na parte externa da casa.
Perguntei como as havia matado. Disse que a pauladas. “Mas só matei as adultas. Criança eu não mato. Quem fez isso foi a “muié”.
Segui para a cadeia feminina. Lucimar, que exibia uma tatuagem de Nossa Senhora Aparecida na panturilha, não quis falar comigo. Foi convencida pelas presas que ameaçaram lhe furar o tímpano com uma caneta. Não cabe a mim aqui fazer julgamentos. Só relatar os fatos.
Sentamos e Lucimar me contou sua versão da história macabra. Lembro como se fosse hoje. Ela contou que Damião estava encostado em uma cerca e estava muito sério. Ela perguntou o que ele tinha e Damião disse que tava com vontade de matar “aquele povo”. Lucimar relatou que tentou demovê-lo da ideia. Ele insistiu. “Então te ajudo”.
Fiquei pasma. Pensei como alguém podia decidir tirar a vida de alguém com tanta facilidade. Perguntei se era verdade que ela tinha matado as três crianças. Ela disse que sim. Como?, inquiri. “Com paulada na cabeça, ué! ia retirando uma por uma do banheiro e matava”
– Lucimar, você tem filhos?
– Tenho um de três anos.
– O que você faria se alguém chegasse e matasse teu filho assim, a pauladas?
– Não ia fazer nada! E depois de morto eu ia fazer o quê?
Eu não tinha mais o que perguntar. Meu estômago revirava. Eu sou mãe. Aquelas declarações doeram em mim. Repórter não é isento de sentir emoções.
Anos se passaram e desconheço o destino deles hoje. Mas algumas coisas não saem da minha cabeça.
Quando visitei a casa das vítimas achei um caderno de um desenho de uma das filhas: numa folha de papel… Leia mais em https://josigoncalves.jor.br/quando-reportei-a-chacina-de-uma-familia-inteira-em-rondonia/