Você é racista?
Expressões usadas cotidianamente são repudiadas pela raça negra e dividem opiniões
Quantas expressões de origem racista podemos estar usando no dia a dia sem saber? Várias, com certeza. A diferença é que agora elas passaram a ser mais fortemente patrulhadas, tanto para punir quem as profere quanto para alertar que as pessoas adotem outra linguagem.
“De meia-tigela”, “a dar com pau” e “da cor do pecado”, ditas normalmente ao longo do tempo, são expressões carregadas de racismo e preconceito, conforme apontam militantes da causa negra. Ocorre que a maioria destas expressões tem origem na época da escravidão quando seres humanos negros eram comercializados e forçados a trabalhar sem remuneração, sofrendo abusos e torturas quando não correspondiam às expectativas de produção ou tentavam fugir do cativeiro.
Por esse ângulo, muitas outras coisas do vocabulário brasileiro também são condenadas pelas entidades defensoras do sentimento de orgulho racial e conscientização do valor cultural dos negros. Poucos sabem, por exemplo, que é considerado errado falar que alguém é moreno, mulato ou pardo.
Segundo a militante da causa negra, Ana Maria Ramos (68), é uma questão de respeito enquadrar a pessoas apenas como brancas ou negras, sem meio termo.
Dentro dessa visão, famosas músicas com as palavras morena (o), moreninha(o), e mulata(o), entre outras do gênero, gravadas também por negros, sempre estiveram incorretas e são ofensivas.
O mesmo pode-se dizer da novela intitulada “Da cor do pecado”, exibida pela Rede Globo em 2004, onde a personagem feminina principal era a atriz Taís Araújo, negra.
Enfim, conforme Ana Maria Ramos, o erro estaria vindo de todos os lados. A começar pelo mais conhecido formulário oficial nacional, do IBGE, que distribui a população entre brancos, amarelos, pretos e pardos. Nada de negros. “A classificação de negros é a soma da população preta à população parda para a formação de um grupo. No entanto, parda é uma das classificações mais rejeitadas pela raça negra”.
TEM QUE ABOLIR
Ana Maria era militante do Grupo de União e Consciência, de São Paulo, onde residia, e ao se mudar para Rondônia fundou o Grupo Raízes, já extinto, para continuar lutando contra a discriminação e o preconceito. Agora, ela está ligada a grupos de mulheres negras, fazendo palestras em várias cidades com abordagem sobre saúde comunitária.
“Muitas frases, termos, expressões, têm que ser abolidos do vocabulário brasileiro, destacando-se “serviço de preto” e a cor parda, que não tem nenhuma raiz. Dizer que uma pessoa é morena, parda, mulata, crioulo, é uma ofensa. As pessoas devem ter noção sobre o que falam. Tudo o que queremos é respeito a nossa raça”, salienta a militante.
Mais citações questionáveis estão em produtos de beleza, principalmente de tintas de cabelo, que trazem nas embalagens denominações como morena linda, morena incrível, morenas fascinantes. “É muito triste! Demorou tanto para que o mercado produzisse cosméticos próprios para negros e erram sobremaneira em suas propagandas”, desabafa a militante. Ela ensina que, ao invés de morenos ou outras classificações, filhos de casais formados por brancos e negros devem ser anunciados como afrodescendentes ou negros, independente da tonalidade da pele.
Não se ofendem
Porém, nem todos pensam como Ana Maria Ramos. A família De Paula, de Vilhena, acredita que rotular antigas expressões de preconceituosas ou racistas é uma besteira. “Se uma mulher disser que sou um moreno da cor do pecado eu vou receber isso como um elogio. Minha família descente de negros, mas ao longo dos anos houve a miscigenação com outras etnias e eu me considero moreno. Para mim, negro é quem tem a pele bem mais escura”, afirma o marceneiro Vantuir Francisco de Paula Sobrinho (49), que tem o apelido de Polaco por ter a tonalidade de pele mais clara na família.
O irmão dele, José Francisco de Paula (67), produtor rural, é outro que não vê problemas em expressões consideradas racistas. “Dizer que choveu a dar com pau, que fulano é trabalhador de meia-tigela ou que sou moreno escuro não me ofende em nada. Chega a ser uma arrogância quererem mudar a linguagem coloquial das pessoas. Muitos negros, pretos, morenos, pardos e mulatos já falaram, e ainda falam, essas frases. Essas coisas podiam ser racistas lá atrás, na época da escravidão. Mas, com o passar todo tempo, perderem essas características. Aqueles que dizem ser preconceito ou racismo nos dias de hoje parecem querer vitimizar a raça”.
Aos 88 anos, dona Nair Brunk de Paula, aposentada que deu a luz Vantuir, José Francisco e mais nove filhos, também afirma que as expressões proibidas atualmente não lhe ofendem em nada. “Eu sou morena escura, meus filhos são morenos de tonalidades variadas e não enxergo os problemas da definição ‘morenos’ que tem gente vendo por aí”, assegura.
NEGUINHO
Tratamentos tidos como carinhosos, a exemplo de “minha nega”, e apelidos como “Neguinho” estão entre os piores na lista proibida. Mas, para muitos, tudo depende da interpretação individual. “Meu apelido é Neguinho e eu gosto mais dele do que do meu nome. E coloquei Neguinho no nome da minha empresa porque já estava associado ao meu lado profissional, graças a Deus, muito bem visto na cidade. Tem mais: podem dizer que sou da cor do pecado. Vejo isso como elogio”, diz Roberval Soares de Lima (49), proprietário da Neguinho Som, em Vilhena.
Para Neguinho (o entrevistado preferiu ser tratado assim), “está havendo uma distorção sobre o que é o real racismo, algo que vai muito além da cor da pele de alguém, e o que é imaginário. Existem, obviamente, atitudes racistas, quando se usam algumas frases para depreciar a raça negra, como ‘neguinho sem vergonha’. Mas isso não é comum acontecer. Neguinho, no meu caso, é uma forma carinhosa com que me tratam”, frisa o empresário.
Ele conta que sofreu racismo apenas em uma ocasião. “Aos 21 anos fui morar em Marechal Cândido Rondon, cidade paranaense que é reduto de alemães e seus descendentes. Lá dificultaram a abertura do meu comércio, que então tinha o nome de Rondo Som. Também foi difícil fazer amigos, mas depois eles mesmos viraram meus clientes e me indicavam na sociedade. Por outro lado, me apelidaram de Schwarz, que eu não sabia o significado em português. Quando me disseram que era ‘preto’ não achei ruim, até porque todos também me chamavam de Schwarz amistosamente”.
Neguinho explica que retornou para Rondônia um ano e meio depois para casar-se com a namorada que havia deixado neste estado, onde também residiam seus pais e irmãos, e onde montou a empresa que possui até hoje.
Uma das filhas do empresário, Renata Lima (18), que trabalha com o pai na loja, comenta que, muitas vezes, o racismo está na cabeça das pessoas. “Eu sou morena clara e não acho certo que me classificarem como negra. Tenho orgulho da minha descendência, é óbvio, no entanto, a mistura de raças no Brasil é muito bonita e seus frutos devem ser valorizados como tal. A cor morena é a que me representa”, garante a jovem.
Entre contras e a favor, conheça alguns exemplos censurados:
Cor de pele
Aprende-se desde criança que “cor de pele” é aquela meio rosada, meio bege, porém o tom não representa a pele de todas as pessoas.
Denegrir
A palavra é sinônimo de difamar e possui na raiz o significado de tornar negro, manchando uma reputação antes limpa.
A coisa tá preta
A fala se reflete na associação entre “preto” e uma situação difícil, sugerindo negatividade.
Doméstica
Durante a escravidão, negros eram tratados como animais rebeldes e que precisavam ser domesticados.
A dar com pau
Expressão originada nos navios negreiros. Muitos negros faziam greve de fome na travessia entre o continente africano e o Brasil e, para obrigá-los a se alimentar, um “pau de comer” foi criado para jogar angu, sopa e outras comidas pela boca.
Meia-tigela
Os negros que trabalhavam à força nas minas de ouro nem sempre conseguiam alcançar suas metas. Quando isso acontecia, recebiam como punição apenas metade da porção de comida e ganhavam o apelido de “meia-tigela” como significado de incompetente.
Mulata
Na língua espanhola, referia-se ao filhote macho do cruzamento de cavalo com jumenta ou de jumento com égua. A palavra remete à ideia de sedução, sensualidade.
Cor do pecado
Utilizada como elogio, se associa ao imaginário da pessoa negra sensualizada.
Moreno(a)
Dizer que uma pessoa é morena ou mulata seria uma forma de embranquecê-la.
pardo(a)
O pardo não é raça, não é povo, não é cidadão brasileiro. Ele é o estágio transitório entre a base da pirâmide (negros) e o topo (brancos)
Não sou tuas negas
A mulher negra como “qualquer uma” indica a forma como a sociedade a perceberia: alguém com quem se pode fazer tudo.
Inveja branca
A ideia do branco como algo positivo é impregnada na expressão que reforça, ao mesmo tempo, a associação entre preto e comportamentos negativos.
Dia de branco
Daria a ideia de que só os brancos trabalham, associando-se ao preconceito de que os negros são preguiçosos.
Serviço de preto
Representa uma tarefa malfeita, realizada de forma errada.
Existem ainda aquelas expressões utilizadas com naturalidade, mas que também constam do cenário impeditivo, ou seja, “mercado negro”, “magia negra”, “lista negra” e “ovelha negra”, entre outras inúmeras expressões em que a palavra negro representa algo negativo.